“Alguém me avisou pra pisar nesse chão de devagarinho…”. O apelo entoado no clássico samba de Dona Ivone Lara adorna com maestria uma parte preciosa do recém-inaugurado Boulevard da Gastronomia, pela Prefeitura de Belém, no bairro da Campina, uma das obras prioritárias da gestão municipal em preparação à Conferência das Partes da Organização das Nações Unidas (COP-30), em 2025.
O investimento do executivo municipal em parte do conjunto tombado, em 1977, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) proporciona à sociedade, desde o último dia 25 de novembro, um espaço completamente revitalizado, com instalação de luminárias de LED e fiação subterrânea, restauro de monumentos, novo paisagismo e pintura, calçadas acessíveis, bancos, lixeiras, ciclofaixa e bicicletário.
Recuperação da memória
Mas, é importante observar um detalhe sob os pés de cada transeunte: os formosos ladrilhos hidráulicos típicos do século XX. Foram 50 mil novas peças reproduzidas uma a uma, de modo semi-artesanal, por uma jovem fábrica da capital paraense, no intuito de compor o piso, então incompleto e desgastado, do local, tendo as originais como modelo.
Aceitar o desafio de recuperar peças tão representativas da memória do lugar tem inúmeras vantagens e tornam a iniciativa do poder público um compromisso com a consciência histórica de sua população e com o fortalecimento de uma nova economia.
Pelo menos duas pessoas foram essenciais neste processo, ambas arquitetas. Carolina Gester, autora da dissertação de mestrado “Ladrilhos hidráulicos em Belém: subsídios para a sua conservação e restauração”, defendida em 2013 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Beatriz Maneschy, que adquiriu os primeiros equipamentos para fundar a Igapó Ladrilhos Hidráulicos, em 2021, a partir das informações descritas na pesquisa de Carolina.
O trabalho acadêmico destaca que o ladrilho hidráulico é um material conhecido por seu desempenho contra desgaste, pela facilidade de manutenção e por apresentar valor estético diferenciado, em função de seu revestimento rústico e elegante. A empresária Beatriz Maneschy vai além.
Memória afetiva
Durante sua formação acadêmica na Universidade Federal do Pará (UFPA), Beatriz teve experiências que consolidaram sua identificação com o trabalho na área de Patrimônio. Passou por estágio no Fórum Landi e foi bolsista no Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural. Mas, em 2020, no início de sua vida profissional, as oportunidades no mercado estavam mais abertas para o trabalho na criação de projetos e Beatriz não se satisfazia com o padrão de materiais oferecidos. Queria peças mais personalizadas, para ela e para o cliente.
“Se a gente for ver, todos os prédios históricos têm ladrilho hidráulico. Todo mundo tem uma memória de ladrilho hidráulico, de infância. Eu tenho a casa da minha bisavó, que tem ladrilho, aqui em Belém. Mas, não tem fábrica de ladrilho. A fábrica mais perto ficava no Nordeste, com frete era caríssimo. Achei que seria um nicho a ser investido”, relembra a arquiteta que se tornou empresária em 2021.
A inquietação fez Beatriz chegar na pesquisa de Carolina e a uma fábrica desativada na cidade de Abaetetuba. Dos contatos por Facebook até o encontro com a viúva do mestre ladrilhiero na cidade do nordeste paraense, passaram-se mais de seis meses.
“Ela não queria vender a fábrica. Tinha um apego, medo que as pessoas que adquirissem não fossem continuar. Foi um processo de convencimento até ela resolver vender. A gente adquiriu todas as prensas, tudo o que tinha da fábrica. Começamos a Igapó do zero”, conta.
Etapas
Três prensas e molduras. Nada de desenhos. Beatriz insistiu na ideia. Alugou guindaste para trazer as pesadas prensas de ferro fundido até Belém. E foram instaladas em um imóvel da Praça do Carmo. Mas, ainda não era só. “A própria técnica do ladrilho! A gente não conhecia, até então, alguém que soubesse. Fizemos várias consultorias, em Brasília, em São Paulo…”, acrescenta.
O clima quente e úmido da Amazônia não combinava com as técnicas que aprendeu no Sudeste e no Centro Oeste. As primeiras peças começaram a vingar com a chegada do mestre Mariano Batista de Souza Trindade, de 48 anos de idade, e uma trajetória iniciada aos 17 na lida com o ladrilho hidráulico, em uma fábrica no bairro do Tapanã.
Há uma série de etapas até se chegar às peças prontas para entregar ao cliente, dentre elas, há fatores naturais que interferem diretamente. No caso de um bem histórico, como o piso do Boulevard da Gastronomia, profissionais do Patrimônio e arquitetos da obra precisam orientar qual a linha de restauro a empresa deve seguir na fabricação, se o interesse é reproduzir peças o mais parecidas possível com as originais ou se é criar novas peças, destacando a diferença em relação ao original.
Para o Boulevard da Gastronomia, Beatriz conta que a Igapó recebeu ladrilhos originais para reprodução. “Ele é texturizado. É um ladrilho hidráulico, só que, na hora em que é fabricado, ele tem um prato com essa textura para ficar antiderrapante. Para áreas externas, é melhor, especialmente quando chove”, explica a empresária.
Com a linha definida, é hora de elaborar as peças-teste. “A gente fez estudo da textura, para poder mandar ao fornecedor. É tipo uma planta-baixa, um desenho da peça. Foi a parte que mais deu trabalho: chegar na peça final aprovada”, revela. O estudo de cores foi outra empreitada. Experimentaram quatro tons até a aprovação.
Mãos à obra
Passaram-se dois anos nesta etapa até a fábrica iniciar a produção dos ladrilhos que compõem o Boulevard da Gastronomia, em março de 2023. Doze trabalhadores foram contratados para cumprir a tarefa de entregar as 50 mil peças em setembro. Até então, a fábrica contava apenas com quatro funcionários fixos. Além de emprego, perpetua-se uma fina sabedoria.
Cada peça é feita uma a uma. Camadas de cimento e de areia. Tinjimento. Até ficar de molho na água, para aguardar, naturalmente, a cura do cimento. Repousa ao livre para secar, o que é mais ágil no verão amazônico e mais lento no tempo chuvoso. De 15 a 20 dias.
Satisfação garantida. “É como eu falei para os rapazes que participaram. É muito importante saber que, de alguma forma, a gente participou da história da cidade. Aquela peça, aquele ladrilho, se tiver uma manutenção boa, vai durar mais cem anos”, reconhece Beatriz.
Ela encara o nicho da fabricação em uma cidade que tem a economia assentada em serviços e nutre expectativas. Ter sua assinatura em um projeto do porte do Boulevard da Gastronomia “é uma forma de passar mais credibilidade para os clientes; saber que a gente fez uma obra grande; conseguiu entregar. Os possíveis clientes vão confiar mais na gente”.
O Boulevar da Gastronomia é parte dos investimentos da Prefeitura de Belém que preparam a capital paraense para a COP-30, em 2025, e gera resultados para cidade desde já.